terça-feira, 23 de julho de 2013

DESENCARNA, VIAJA DOMINGUINHOS





Um Cristo pregado numa cruz
Um cego que tenta acender a luz
Como o dia que transcorresse sem o sol
Como o peixe a ser fisgado no anzol
Como um rio que não corresse mais
Como um louco que já não vive em paz

Assim sou eu vivendo sem teu amor
Sou como as águas do riacho que a correnteza levou
Como as águas do riacho que a correnteza levou
Como as águas do riacho que a correnteza levou

Como a rosa que morreu com a idade
Como o vento que destruiu a cidade
Como a chuva que molhou o nosso pranto
Como a vida que vive lá no canto
Como a folha que seca cai no chão
Como o mar sem a sua agitação
Assim sou eu vivendo sem teu amor.

Esta é canção “Correnteza” de Jorge de Altinho e Ezequias Rodrigues.

Não sei explicar direito, mas foi esta a primeira canção que me veio à mente quando soube do desencarne de Dominguinhos. Aliás, é possível que eu saiba. Contudo, me falam elementos fonéticos que possam expressar com exatidão o sentimento que corre nesses parágrafos. O que sei que sinto, nesse momento, não é de perda. É de total alívio. Alívio diante de uma angústia, de um sofrimento, de uma dor que lhe mata minuto a minuto. Talvez, posso assim dizer, a mesma dor retratada pela canção do poeta Altinense. Quiçá, mas dramaticamente ainda, seja o mesmo suplício enfrentado por Prometeu, após revelar Pandora ao mundo dos mortais.

Imaginemos, por exemplo, um sujeito que está sentado no corredor da morte, totalmente inocente dos seus crimes. Ele observa os médicos passando, organizando a dose letal; ele recebe o padre pra extrema unção; compreende a leitura das leis que pesam sobre ele e... por um motivo qualquer, resolvem adiar por mais um dia a sua morte... por mais dois dias... por mais dois dias. E quando finalmente chega o dia, a dose não foi letal. Ele sente ópio lhe invadir lentamente, torturando o seu corpo. Por dias ele permanece nessa condição.

Suponhamos, também, um paciente acometido de uma doença degenerativa. Um professor ou um cantor que ganha sua vida com a voz e perde as cordas vocais. Um velocista que precisa das pernas pra bater seus recordes e torna-se tetraplégico. Um pianista que tem seus dedos e mãos atrofiados por um acidente qualquer. Corpo doente é corpo limitado e preso, condenado a não viver em plenitude tudo que se pode e se deve viver.

Doença e saúde se referem ao estado em que se encontram as pessoas e não ao estado de órgãos ou partes do corpo. O corpo físico nunca está só doente ou só saudável, já que nele se expressam realmente as informações da consciência. O corpo de um ser humano vivo deve seu funcionamento ao espírito que o habita.  Quando as várias funções corporais se desenvolvem em conjunto dentro de uma harmonia, ele se encontra num estado que denominamos de saúde. Se uma função falha, ela compromete a harmonia do todo e então falamos que ele se encontra em um estado de doença. A doença é a perda relativa da harmonia.

Por fim, imaginemos, vencermos todas essas limitações. O professor voltar a dar aulas. O cantor voltar a encantar com sua voz. O atleta percorre distâncias maiores. O musicista que se entrega novamente aos concertos mais completos de sua carreira. Nesse momento, o Cristo não estará mais no alto do madeiro e nem o mar irá perder a sua agitação. Os dias irão transcorrer em pleno sol de verão e a vida não mais viverá num canto, esquecida.

É justamente assim, creio eu, que está se sentindo Dominguinhos. Vencedor das suas batalhas. Herói nas suas limitações. Homem de carne e osso que não sofre mais com as limitações impostas pela doença. Ser eterno que traça agora nova rota em direção ao infinito.

Agarrado com sua sanfona, se junta ao rol dos sanfoneiros nordestinos que outrora partiram e aguardavam ansiosos pelo reencontro com o compadre. Sivuca, de garra com sua sanfona, deve tá tocando “Subindo ao Céu”, todo prosa. Já o Rei do Baião, deve solicitar a canção “Ave Maria Sertaneja”, com os olhos voltados para o afilhado, estendendo-lhe o abraço. Lindú (do Trio Nordestino) provavelmente se balança de alegria com o reencontro, gritando: “Êta, bicho bom”.

O Festival de Inverno de Garanhuns, com certeza, sofrerá o frio mais atordoante de sua história. O seu filho mais ilustre acabou de partir para as estrelas. E daqui, do mundo dos mortais, continuaremos sentindo o frio da tua ausência, a saudade da tua voz, a solidão da tua voz grave e a alegria de que temos a certeza do teu lugar no céu dos justos.

Vai, teu sorriso está conosco. Tua canção e tua poesia continuarão ecoando entre os Brasis desses Sertões.

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