sexta-feira, 25 de junho de 2010

“Eu perdi a Esperança que Deus tinha me dado”.



Numa manhã de 17 de Agosto de 1999, estava eu numa sala de aula quando me bateu uma vontade de estourar uma bendita espinha que me incomodava desde o dia anterior. Aproveitei o intervalo e fui até ao banheiro. Mirei os polegares na espinha localizada entre a boca e o nariz e, pressionei-a.


Esse foi o ato gerador de meses de sofrimento. No final deste dia, que era uma quinta-feira, meu rosto estava totalmente desfigurado. Foram cinco dias e cinco noites seguintes sem conseguir um minuto de sono tranquilo. Até que fui levado ao Hospital do IPSEP. Lá me deram o diagnóstico: o meu rosto estava sendo alimento para o estafila cocos, provocando a necrose da carne do rosto. Precisaria urgentemente cortar meu nariz e parte do rosto para tentar salvar minha vida. (...)




Fui encaminhado para um bloco de onde se preparavam para cirurgiar meu rosto. Numa maca, com um soro no braço, me despedi da minha mãe, da minha namorada e da minha cunhada na época. Os olhos banhados por um rio de lágrimas viram aquelas três mulheres ficarem cada vez mais distantes, acrescentando o som inesquecível das rodinhas da maca, cortando os corredores de paredes brancas e frios. (...)



Diante de tamanha angústia, eu falei com Deus, ao meu modo. E ao modo de um homem pecador, rude, frágil e ignorante, sem fé e sem esperança de vida, eu falei para Ele, em tom desesperado e derradeiro:
- Por favor, não me deixe sofrer mais. Eu quero morrer. Não faz mais sentido viver uma vida sem o meu rosto. (...)



Quem me conhece pessoalmente, sabe que o final não foi como previram alguns médicos e até conhecidos. Eu me recordo que em Pombos, onde estourei a espinha, muita gente jurou que eu havia morrido ou que eu não voltaria nunca mais a trabalhar...



(...)


Bem... Esta semana, acompanhando as catástrofes das enchentes em Pernambuco e Alagoas, especialmente pela Internet, eu li uma frase que me chamou muito a atenção e os comentários que se seguiram com a relação ao que foi dito por uma senhora que havia perdido tudo que construiu ao longo de sua vida. A frase que me refiro é a chamada desta crônica.



Muitas pessoas compadeceram-se da situação. Outros tantos, desconsiderando a gravidade da situação, aproveitaram para fazer proselitismo barato. Um cidadão, para ilustrar bem o resumo das críticas feitas àquela mulher, disse:


“Essa mulher deveria bater na boca e não blasfemar mais contra Deus, porque não foi ele quem enviou as enchentes. Se ela perdeu tudo é porque ela precisava passar por isso. Não sei bem ao certo, mas é provável que ela, assim como centenas de outras pessoas, construiu sua casa às margens do rio. Isso é uma imprudência... Tenha mais fé, minha senhora!”


Para quem nunca viveu certa dificuldade, sempre é mais fácil atravessar o caminho de pedras. Toda teoria, filosofia, sociologia e ideologia no papel, no falar, é muito cômodo. Simples. Rudimentar, diria. Em se tratando de situações como essas, das enchentes, tudo que entendemos por fé, por esperança, de certa forma, fica de lado e, sem vergonha alguma, o homem fica a deriva das suas próprias crenças. É um momento de fragilidade, de fraqueza, de desespero, sim! Que não deixam as pessoas que sofrem enxergarem se não outra opção a sua frente. O desespero. Restam-lhes o tempo para entender o plano maior do que cada um tem que viver, por opção.



Quando li a frase da alagoana, me recordei imediatamente do sofrimento que eu passei no final do século passado. Eu também blasfemei. Eu também perdi minhas esperanças. Eu também coloquei em cheque as minhas convicções. Eu também fiz as perguntas a Deus: - Porque eu? O que foi que eu fiz para merecer tanto sofrimento?



Além dessas, outras perguntas se seguem ao longo do momento crítico da vida. São perguntas que mereceriam respostas. Mas todas seriam no campo da crença que cada homem tem e, assim, a lógica não aparece muito aceita para quem está de dentro e para quem ver o drama de fora. Crenças apontariam a fatalidade como lógica. Outras demonstrariam que a crença é algo que deve ser seguido cegamente, sem questionamentos. Assim, repasso as perguntas para todos:



Por que tanto sofrimento terreno? Onde está nisso o sentido da vida? E por que um Juízo Final e um ajuste? E onde fica o livre-arbítrio que, conforme consta, o ser humano possui, se ele está exposto a todos os golpes do destino? Por que Deus permite que aconteçam tantas injustiças na Terra? Os seres humanos foram criados apenas para sofrer? E não consta que todos são filhos de Deus? Se é assim, por que existe então tanta desigualdade entre as criaturas humanas? Por que de um lado a pobreza e de outro lado a riqueza e abundância? Por que existem pessoas bonitas e feias? E por que crianças inocentes nascem aleijadas? Estas crassas diferenças não deixarão surgir dúvidas quanto à justiça de Deus?



São perguntas de quem sofre ou de quem já sofreu um golpe. Para quem nunca foi testado, fica a arrogância, a falta de indulgência para com o próximo. Quem já teve oportunidade de ler o magnífico livro Paulo e Estevão, Psicografia de Chico Xavier, recorda-se de que Paulo (Saulo de Tarso), na estrada de Damasco, ficou cego e ouviu a voz de Cristo dizendo: - Paulo, Paulo, porque me persegues? O livro conta o antigo doutor da lei nada sabia dos desígnios divinos e que embora com eloqüente oratória, não disse uma só palavra na primeira vez que tentou falar do Amor de Jesus, em audiência na Casa do Caminho.



A dúvida e a fé são nossas armas em nossos conflitos internos. São elas que nos apontam para a treva ou para a luz, de acordo com o que escolhermos. Quem sou eu para dizer que a desabrigada de Alagoas blasfemou contra Deus? Quem são as pessoas que se acharam no direito de me determinar a morte, sem que eu mesmo precisasse encontrá-la antes do tempo?



A dualidade dos sentimentos nos reveste em todos os momentos de nossas vidas. O pouco tempo nos faz ver como são grandes os golpes que surgem na caminhada. O longo tempo, no entanto, nos comprova o quão grandes são nossos braços para amparar o próximo; o quão grandes são nossos corações para nos compadecermos do sofrimento alheio; o quanto é importante entender que as linhas que costuram nossas vidas são mais fortes do que nossa própria fé, mesmo que está seja imensamente inquestionável. Tal é a lei.



Entender é ato divino, sublimado. Por isso é difícil a sua execução. Atirar pedras é fácil. Qualquer louco o faz.

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