sábado, 30 de janeiro de 2010

FIM: “Eu vou embora, mas nunca digo adeus”.

AMANHECEU NOSSO ÚLTIMO DIA NA ÁFRICA!
Dia 19 de Janeiro de 2010

Despedimos-nos de muita gente querida, amados que andaram conosco todo o tempo e fazendo assim, iniciaram, eles próprios seu andar em nova consciência.


Sair desse campo de batalha não é fácil. Como todo lugar onde a loucura acontece à luz do dia, esse lugar que se põe escondido do resto da Terra. Ah! E que dura realidade! Violenta! Passados dois dias inteiros de batalha campal e aberta, minha alma amanheceu com um grito entranhado, nunca libertado, da dor de ver.

Ah! Se eu pudesse colocar você dentro das minhas pálpebras! Depois que a gente vê as coisas que tenho visto não dá mais para fingir que não viu.

Não me refiro à pobreza extrema. Os pobres, sempre os teremos conosco... Falo a respeito da mais estranha categoria de estigmatização infantil. Tenho por certo que uma bomba de insanidade varreu a humanidade que um dia possa ter existido aqui. Agora... para qualquer lado que se olhe, está tudo lá... É difícil apagar. Ficou estampado, marcado, manchado. É um painel de horrores e o famoso clichê se aplica aqui: É cenário de guerra civil. Tem sangue, mosquito, estupro, abutres, mutilação, monturo, extorsão, maldição, feitiçaria, tumores, exploração, correntes, medo, terror, desencanto e morte.



Já vi muita criança sem alma vagando esse lugar! Andam leeentas, feito velhinhos encurvados, sem expressão ou gesticulação. Olhar vago, perdido, entreaberto, confuso. Espectros calados, semi-vestidos, silenciados...

O mal nesse lugar é diferente da fome, da peste e dos terremotos: Aqui, a matança dos inocentes bruxificados é um negócio epidêmico, abrangente, crônico, tentacular, covarde, conveniente, coletivo, impregnado e palpável. É aqui! É aqui mesmo – a geografia do mal!

Pensar, por exemplo...
Pensar é o tipo de coisa que já paramos de fazer faz tempo! Aliás, parece que tudo “faz tempo...”.
É difícil explicar


Então, num barquinho-canoa que mal nos continha sem virar, ainda nos acompanharam três amigos que se auto-promoveram nossa “equipe de segurança”. Além deles, iam nossas malas, pranchas de surf, câmeras de vídeo e fotos com o registro visual de tudo que temos escrito nesse diário.

O barco correu o rio Níger, imenso e assemelhado aos afluentes amazônicos das minhas primeiras experiências transculturais. E aportamos em outro Estado da Nigéria: Cross River, na capital Calabar.

Um motorista de van incrivelmente bêbado nos levou até o aeroporto local e, como nossos amados “seguranças” continuavam conosco colados, ficamos todos mais apertados dentro do carro do que estávamos antes no barco. Despedir-se deles foi triste. Estamos torcendo muito para que eles reguem o que semeamos em sua terra. Constrange ver uns negões altos e fortes chorando o mesmo choro fino e aflito das crianças que também deixamos. Sei que o sentimento deles é o mesmo que o delas: De abandono.

Um avião todo velho nos levou até a maior cidade do país, de onde se parte para o exterior. Mofamos lá o dia inteiro em mil check-in e check-outs devido aos rigores impostos aos nigerianos depois que um deles quase explodiu um avião americano. Mas, nesse aeroporto, pela primeira vez durante esse tempo, almoçamos “dignamente”. Comida “normal”... Sabe arroz, batata, frango...? Coisas do nosso dia a dia que desapareceram do cardápio no meio do nada-africano.

Chegou a noite e finalmente embarcamos rumo à Europa. Descemos em Madrid já era dia 20, e lá começamos a nos separar: Os Leonardos embarcaram para Londres, e os demais, para o Rio de Janeiro.

Agora, já passadas cinco horas de vôo, o Jojô está ouvindo música, o William resolveu começar a falar inglês – feito efeito retardado, pois na Nigéria ele só se comunicava por sinais! O Clayton, sempre muito ativo, está aqui andando de um lado para o outro... Como as janelas estão fechadas, não tenho qualquer temor que ele se jogue... De vez em quando peço um suco só para dar finalidade aos seus passeios pela nave. O Adailton está aqui do meu lado tomado de uma rinite alérgica infinita (eu já estou todo molhado... putz...), porque o aviãozinho que fez o itinerário na África tinha um cobertor altamente povoado de ácaros... Foi nosso último contato com os insetos na África... Os outros voam sozinhos mesmo: uns helicópteros que picam com raiva, umas mariposas gigantescas, formigas pré-históricas...
Eu estou olhando pela janela.

Da Espanha, percebo que voltamos à África, sobrevoando o deserto do Saara, chegamos a Dakar e desde agora a pouco, abaixo de nós só há o mar, o Atlântico, oceano que banha minha cidade de Santos.

Santos...

Ali nasceu a segunda estação do Projeto! Gente terna e apoiadora...

Ali tenho uma casinha de varanda, por fora toda branca. Por dentro toda revestida de amor, simplicidade, ternura, perfume, recordações de nações visitadas e uma criançada levada, que, na minha ausência, todo dia se auto-convocava a orar por mim, pelos meus amigos comigo e pelos pequeninos visitados por papai e que nunca tiveram um pai.

Tem sido assim a cada Missão. Vou embora e volto para casa e para minha própria secularidade e sustento. Por onde passei fiz laços. Nunca disse “adeus”. O mundo é pequeno. Mas voltar para casa – confesso – é sempre a melhor parte da missão de quem parte.

Vejo dentro dos olhos dos meus amigos de missão: Cada um de nós só pensa agora em rever amigos e parentes. O último beijo foi em meio aos fogos do ano virando... E o próximo beijo, quando descermos daqui, virá das profundidades abissais que moram no nosso íntimo, como as do mar abaixo do avião: na superfície só haverá o azul e a alegria do re-encontro; mas nas entranhas silenciosas das lembranças do Campo, quem nos livrará de carregar dessa viagem quase tudo que se leva de uma vida?!

Vamos desembarcar!

Alegria nos encontros. Silêncio na alma.
Fim... do Começo!

Marcelo, sobre o Atlântico Sul.
Enviado pela Amiga Gleizy Gueiros.

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