Estimados, envio-lhes, nesta mensagem, um belíssimo artigo pelo EX-MINISTRO Gustavo Krause, sob o título: Meio Dia no Recife. Krause é atualmente um dos melhores articulistas do Jornal do Comércio do Recife e um intelectual de primeira linha.
Saudações,
Lucivânio Jatobá.
Gustavo Krause - Meio dia no Recife
O Recife de Cícero Dias |
Nada melhor para encerrar o preguiçoso domingo do que ir ao cinema e assistir a um grande filme. Grande não, enorme, mágico, adorável. Domingo de julho com famílias inteiras a desfilarem na catedral do consumo, o shopping, invenção diabólica e fascinante do sistema capitalista.
O filme – Meia noite em Paris – é mais um estalo do gênio Woody Allen. Nele, tudo é leve, sutil, tão sutil que ninguém gargalha diante da inocente comicidade: todos sorriem. Simples e despretensiosa, a narrativa prescinde de qualquer efeito especial. Especial é a viagem em direção aos anos 20 do alter ego de Woody Allen, Gil Pender, projeto de escritor, tímido e inseguro, que percorre Paris, única capital do mundo capaz de abrigar consagrados personagens da arte universal.
Naquela atmosfera de literal embriaguez, Gil dá de cara com Scott Fitzgerald, Cole Porter, Picasso, Salvador Dali, Buñuel, T.S.Eliot, Hemingway, Lautrec, e se depara com a suavemente bela e encantadora Adriana, o fetiche de Picasso e Modigliani. Ali, cai a ficha: outros amores, Paris na chuva, a superioridade da imaginação sobre a razão, o improvável amor de Adriana, afastam Gil de Ignez, a noiva americana, e do pragmático sogro republicano, atento, tão somente, à cultura empacotada.
No túnel do tempo, a tríade – passado, presente e futuro –, invenção da finitude humana, perde o sentido. O percurso, embalado pelo clarinete de Sidney Bechet, é surrealista, fantástico, louco, sublime e produz a sensação de unir o imanente ao transcendente, o imaginário ao real e sombras errantes a seres ressuscitados.
Tão saboroso é o filme que, quando acaba, resta o gostinho de quero mais.
Não sei explicar, mas o filme me transportou para o meio dia do Recife.
Revi a cidade lendária cheirando a banguê. Escutei pregões. Reencontrei árvores frondosas oferecendo aos passantes os frutos permitidos. Ouvi o barulho das tarrafas querendo pescar vida no Capibaribe, rio capaz de despertar alumbramentos com a visão da nudez feminina.
Nas ruas de nomes lindos, a cidade andava sem pressa. Arruando. Do centro para a periferia, todos caminhavam sobre a mão espalmada na direção oposta do nascer do sol. Isto mesmo, porque no Recife, o sol brota das entranhas do mar sob os olhares da cidade morena sentada à beira do Atlântico.
Anfíbia e azul, a cidade brinca de esconder e se oferece, somente, a quem lhe dá carinho.
Bravo, o Recife não aguenta desaforo de quem quer que seja. Por isto, noivou com as revoluções e casou, indissoluvelmente, com a Liberdade.
Sensível, o Recife canta, declama, esculpe, escreve e descreve o espírito irredento, a alma generosa, o abraço hospitaleiro do acolhimento.
Por favor, não perturbem minha visão. Não é delírio de um sonhador. Esta cidade existe. Vi e vivi. Está dentro de mim. Primavera, anos dourados, não importa.
Não me falem de buracos. Bastam os buracos no coração. Não me falem de mobilidade. Basta a paralisação pelo medo. Não me chamem de saudosista; sou melancólico mesmo.
Meia noite em Paris foi uma viagem maravilhosa e curta. Terminou com a ilusão cinematográfica. Meio dia no Recife é o meu pequeno e adorado mundo. Não termina. Ficará comigo, levarei comigo sem as dores da mutilação.
Gustavo Krause.
Consultor e Ex-Ministro do Meio Ambiente
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