segunda-feira, 23 de março de 2009

QUEM SOU EU? UMA COISA? UMA ETIQUETA?

Eu, etiqueta

Em minha calça está grudado um nome
Que não é meu de batismo ou de cartório
Um nome... estranho
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
Minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo.
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências.
Costume, hábito, premência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade,
Trocá-lo por mil, açambarcando
Todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar ora bizarro.
Em língua nacional ou em qualquer língua
(Qualquer, principalmente.)
E nisto me comprazo, tiro glória
De minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
Para anunciar, para vender
Em bares festas praias pérgulas piscinas,
E bem à vista exibo esta etiqueta
Global no corpo que desiste
De ser veste e sandália de uma essência
Tão viva, independente,
Que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar,
Cada vinco da roupa
Sou gravado de forma universal,
Saio da estamparia, não de casa,
Da vitrine me tiram, recolocam,
Objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo de outros
Objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mar artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome noco é Coisa.
Eu sou a Coisa, coisamente.

(Carlos Drummond de Andrade)


Deu uma saudade danada de ler Drummond - meu preferido poeta. Estava precisando ler algo dele...
Lembrei deste poema que conheci na minha adolescência e que me fez pensar tanto sobre o que realmente eu sou e o que o mundo quer que eu seja. A professora de Português nos fazia, vez ou outra, lermos textos de autores diversos, embora sempre sugerisse a poesia, o poema e o conto como foco do seu trabalho. E como era bom ler coisas como essas e através destes textos amplicar a visão que eu estava construindo de mim mesmo e do mundo.
Minha mãe se via louca por eu ter mania de pintar as minhas calças, por gostar do que os outros não gostavam e de calçar o que a maioria jamais calçaria. Eu tinha estilo próprio. Eu tinha identidade além de uma etiqueta, seja ela qual fosse. Elas não me seduziam socialmente nem emocionalmente.
Vejo, hoje, o poder que a mesma mídia tinha sobre meus amigos, sobre minha primeira namorada, os jovens concorrem para saber quem está mais na moda, quem mais está na boca das meninas e vice-versa. Nas escolas, os alunos - desde o ensino infantil - já não tem orgulho de vestir o fardamento escolar. É preciso ter o melhor tênis, o melhor boné, a melhor calça, o mais caro dos óculos de sol e até a cueca mais ponta da moda que houver, são exibidos pela maioria dos adolescentes de hoje, que nem sabem quem foi ou quem é Drummond.
Quando li o poema pela primeira vez, dos pés à cabeça, eu me senti etiquetado. E até nas roupas íntimas, invisíveis aos olhos alheios, também vem grudada uma marca... Não sou mais eu? Deixei de ser quem sou? Assumi outra(s) identidade(s)? E que novas formas de me apresentar perante aos outros passei a utilizar a partir das etiquetas que uso?

Se sou aquilo que visto então sou o jeans da moda ou o genérico vendido na feira ou no saldão do grande magazine? Meu odor é de perfume francês, recomendado por uma bela modelo ou por um famoso atleta? Ou então minha fragrância é somente aquela do desodorante vendido em grande quantidade em qualquer supermercado de bairro? Uso calçados esportivos dos grandes campeões? Ou calço as sandálias que não soltam as tiras, não deformam e não tem cheiro – que até pouco tempo atrás eram populares e hoje são internacionais?

Em meu pulso, a ditar o ritmo de minha vida tenho um original relógio suíço, daqueles que valem um automóvel? O que estou bebendo é anunciado com pompa e cerimônia na TV como a bebida da juventude ou do sucesso? Ando de ônibus ou já me dou ao luxo de ter um belo sedan daquela multinacional poderosa?

Quem sou eu? Homem livre ou escravo da moda e das tendências? Para onde vou e como penso dependem de influências externas, de itens de mercado, de posses e bens? Sou filho de minha mãe e de meu pai ou um rebento do mercado, da publicidade, do consumismo que não apenas consome meu dinheiro, minha grana, mas principalmente minha alma, meu ser?

Num mundo de marcas alhures é difícil perceber-se e, mais complicado ainda, ver os outros por detrás de tantos logotipos, marcas, propagandas e comerciais. O que se vê não é alguém, com RG e Certidão de Nascimento que definem origens, paternidade e dão indícios de identidade... O que vemos, a olho nu, como nos diz do alto de toda a sua sabedoria e alma de poeta o mestre Carlos Drummond de Andrade, é somente o homem etiqueta...

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