sexta-feira, 23 de abril de 2010

OS PRIMEIROS BLOGUEIROS






É costumeiro associar historicamente os folhetos de cordel à tradição dos trovadores medievais, que coloriam com versos e improvisações as feiras locais e religiosas da Europa. De fato, o cordel é em grande parte instrumento de transição – materialização escrita de uma cultura fundamentalmente oral, de cantorias, de repentes, de epopéias que os filhos capturavam nas vozes dos pais.




A imprensa chegou ao Brasil via Dom João VI, mas era brinquedo de uso exclusivo da Corte no Rio. O imaginativo cantador oral parece ter existido desde sempre nos caminhos do sertão nordestino, mas foi necessário esperar até meados do século XIX (segundo Câmara Cascudo, o primeiro folheto de cordel foi impresso em cerca de 1840) para que a imprensa, aportada em Recife, desse voz escrita ao que já corria célere e sem arreio pelas feiras e festas do interior. Foi porém nas duas primeiras décadas do século XX – com a emigração impulsionada pelo ciclo da borracha e com a republicação de folhetos clássicos pelo Padre Cícero em seu jornal O Rebate – que o cordel alcançou consagração definitiva no nordeste (que naquela época chamava-se simplesmente Norte). A década de 1920 foi também testemunha do rico e complexo ciclo do cangaço, que acabou contribuindo com indispensáveis arquétipos para a vasta mitologia da literatura de cordel.




Conta-se que o próprio Lampião era totalmente avesso à invasão do sertão pela cidade, e tomou medidas violentas para evitar a construção de estradas. Nesse cenário, o imponderável intrumento de conexão entre o sertão e a cidade era precisamente o folheto de cordel. Para a isolada população rural, os folhetos faziam as vezes de jornal, revista, novela e livro. Eram comprados por distribuidores na cidade grande (primeiro Recife, depois Juazeiro do Norte), carregados em malas abarrotadas e vendidos onde quer que houvesse gente, sendo oferecidos no chão sobre esteiras ou panos (e nunca pendurados em cordões, como exige a mitologia posterior).




Fiéis à sua origem oral, os folhetos de cordel sempre foram (e permanecem sendo) feitos para serem lidos em voz alta. Na feira rural, o que o vendedor basicamente fazia era apregoar em poderosa entonação o conteúdo dos folhetos que tinha para vender. Os melhores vendedores eram os de melhor oratória; os folhetos mais vendidos os que tinham para contar melhor história ou mais inusitada notícia. O comprador, por sua vez, voltava da feira levando para sua comunidade o indispensável: café, tabaco, roupa e cordel. E naquela mesma noite reuniam-se todos ao redor do afortunado que sabia ler, a fim de – via cordel – inteirarem-se das notícias, ouvirem crítica social, derramarem lágrimas, recordarem epopéias antigas e maravilharem-se diante das novas. O caráter escrito do folheto de cordel era sempre contingente e temporário: o livrinho nascia e vivia para ser cantado, declamado, pronunciado; ouvido muitas vezes mais do que lido, e por mais gente.




Abraçando um espectro tremendamente amplo de assuntos e abordagens, os autores de cordel foram efetivamente os primeiros blogueiros do nordeste brasileiro – tendo usado seu instrumento tanto para recontar histórias novas ou velhas quanto para popularizar idéias que lhes interessavam. Embora tenham brotado fundamentalmente ao redor dos êxitos e dramas do cangaço e de uma visão épica da vida do boiadeiro, houve desde o começo cordéis sobre tudo: literatura, política, ciência, sátira, religião comparada, crítica social, moralidade, medicina popular, morte, sexo, filosofia, drama e humor.




Essa vocação universal permaneceu mesmo diante do choque da década de 1950, quando a migração para o sudeste e a competição do rádio submeteram o cordel a novas pressões e influências. Em São Paulo nasceria, sem qualquer trauma maior, o cordel de temas urbanos; no nordeste, a literatura de cordel acabaria apostando sua singularidade em temas que por sua natureza eram considerados impróprios para o rádio.

Sublimado, o cordel sobrevive à era da televisão e da internet. Em termos recentes, sua encarnação/assimilação mais bem sucedida está na obra de Ariano Suassuna, cujo Auto da Compadecida (adaptação declarada de três folhetos clássicos de cordel) conquistou o Brasil inteiro com sua graça singular – em versões para o teatro, a televisão e o cinema.




Por três semanas entre setembro e outubro de 2005 empreendi (na companhia de um amigo britânico, o teatrólogo Julian Crouch) uma expedição pelo sertão e pelo agreste nordestino em busca das fontes perdidas da literatura de cordel. Conversamos com inumeros cordelistas, gravuristas, repentistas e aficcionados, de gerações passadas e cabelos brancos (vêem-me à mente Jota Borges, de Bezerros, e Manuel Monteiro, de Campina Grande) e recentes e de cabeça cheias de sonhos (Willian Brito, do Crato, e Arievaldo Viana, de Fortaleza). Visitamos feiras e festas religiosas e estações rodoviárias; buscamos numa nave de igreja, entre peregrinos, abrigo para o calor da bem-aventurada Canindé; vimos mais de um artista gravando “tacos” com facas e goivas e estiletes; conversamos com um entusiástico Willian Brito num restaurante de Juazeiro, e um docílimo João Pedro gravou-nos e imprimiu-nos uma xilo em sua oficina de Fortaleza; fomos cordialmente abraçados em todo lugar, e dançamos Jackson do Pandeiro bebendo cerveja na arejada sala de Arievaldo; testemunhamos milagres, dormimos em rede, comemos bolo e queijo de coalho e baião de dois e tapioca e açaí e buchada de bode.




Voltamos com a mala cheia de panfletos e xilogravuras e matrizes de madeira. Voltamos com a cabeça cheia de histórias, de piadas, de declamações apaixonadas e cadenciadas de noites e fogueiras e fogos de artifício. Voltamos com a convicção de que o cordel permanece vivo de tantas formas que é impossível contar. Hoje creio que aqueles que apostam na singularidade do cordel não são, como eu imaginava, visionários: são gente que conhece bem a história que ainda tem para contar.



Paulo Roberto Purim.

0 comentários:

Postar um comentário