sexta-feira, 26 de junho de 2009

MANUEL CORREIA DE ANDRADE


“M.C. DE ANDRADE”
Lucivânio Jatobá *

Foi naquele turbulento ano de 1963 que tive o primeiro contato com Manuel Correia de Andrade. Após um rígido Exame de Admissão, uma espécie de “vestibular” prematuro, fui acolhido pelo Colégio 3 de Agosto, em Vitória de Santo Antão, na época, um pequeno município da Zona da Mata pernambucana.

Uma semana antes do início das aulas, o Diretor do colégio entregou a lista dos livros, que deveriam ser comprados e obviamente estudados. Era um livro para cada disciplina, algo ao qual não estávamos acostumados: Ciências (Valdemar de Oliveira), Matemática ( Carlos Galante), História ( Borges Hermida), Português ( Vilanova), Geografia ( M.C de Andrade e Hilton Sette)... Dirigi-me à “livraria de dona Pautília” para comprá-los, cheio de curiosidade, afinal ia começar o Ginásio, um passo enorme na carreira estudantil de então.

Meu professor de Geografia, homem sério, sisudo, no primeiro dia de aula disse a todos nós, meninos do 3 de Agosto: vocês irão conhecer o mundo, estudando essa disciplina fantástica, que é a Geografia. Preparem-se!!!!

Preparem-se!!!! Aquela imposição inquietou-me. Preparem-se!!!! Voltei para casa com aquela frase ... E à tarde, após uma “pelada improvisadíssima” , resolvi abrir o livro Geografia Geral. Chamou-me a atenção um dos nomes dos autores: M.C. de Andrade. Quem era M.C. de Andrade? Quem seria aquele que, ao lado do seu co-autor, Hilton Sette, iria me fornecer as noções teóricas fundamentais da disciplina que me faria “conhecer o mundo”, nas sábias palavras do prof. “Bira”? No ensino Primário, tive apenas vagas noções de Geografia, e nunca ninguém me dissera que ela me faria conhecer o mundo...


Passei a ler o livro Geografia Geral, do M.C de Andrade, com curiosidade. Fascinavam-me as fotos, em preto e branco, de lugares e paisagens tão distantes da pequena Vitória de Santo Antão. Muitas vezes, buscava mais informações complementares numa coleção fascinante, intitulada “O Tesouro da Juventude”. No Segundo Ano ginasial, outro livro de M.C de Andrade, desta feita, um que analisava as regiões brasileiras. E no Terceiro Ano, outro de M.C de Andrade: Geografia dos Continentes... Sempre M.C de Andrade... E a frase do prof. “Bira”, com um certo ímpeto, me voltava à mente: “preparem-se!!!!!”

Em Vitória de Santo, como em todas as áreas emersas do planeta, há rios, vales, vertentes, áreas planas e rebaixadas, rochas, solos, vegetação... e gente. Esses elementos paisagísticos encontram-se numa interação dialética impressionante, que só depois, bem depois das aulas do de Agosto, quando despertei para a Dialética Marxista, pude compreendê-la em sua plenitude.

Os livros de M.C de Andrade faziam-me ver esses elementos paisagísticos não mais como um mero amontoado de coisas desconexas, mas como um cenário de uma grande peça , na qual todos os atores são importantes e se relacionam, em que todos têm um papel a desempenhar. Após a leitura dos capítulos dedicados, por exemplo, à Geografia Física, passei a identificar as complexas relações entre a litologia da Serra de Pacas, a tectônica local e o fluxo das águas que acabavam por desembocar no leito do Tapacurá, o rio que cortava, mansa e perigosamente, a minha cidade querida. A verdade é que não fui mais o mesmo...

Alguns anos depois daquele primeiro dia de aula no famoso e disciplinarmente rígido colégio vitoriense, descobri a atividade política, numa outra sala de aula, agora no prédio da antiga Escola Técnica Federal de Pernambuco ( ETFPE, como carinhosamente a chamávamos). O ano era de muita efervescência política. 1968, ano de muitas recordações; ano de muitas descobertas. Em poucos meses, estava participando do GENIP ( Grêmio Estudantil Nilo Peçanha) e daí o pulo foi grande para a atividade contestatória, inserido que fiquei em um grupo político clandestino. A atividade partidária era limitada a dois partidos “legais”: a ARENA e o MDB, que , na época, não me despertavam o menor interesse... Fui levado pelos arroubos de juventude.

Numa tarde, daquele ano famoso, recebi um jornal clandestino, ultra-radical. Foi-me presenteado por Marcos Valença, um jovem inteligente, agradável e oriundo de uma família de expressivos comunistas pernambucanos. Era o “Resistência Secundarista” ou RS, como dizíamos. O jornal mimeografado, de qualidade gráfica sofrível, trazia , logo na primeira página, a frase de Lênin: “ Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário”. E ao lado da frase, o desenho de uma pilha de livros e sobre esta uma metralhadora... Recebi o jornal de Marcos, mas com uma ressalva importantíssima para a época: “ cuidado, não mostre a ninguém! Leia escondido!”

Fiquei ansiosíssimo para ler aquele material tão “perigoso”, que deveria ser consultado em local fechado e isolado... Era um jornal de partido e se destinava a formar o que os comunistas designavam como os “novos quadros revolucionários”.Em minha casa, dediquei-me à leitura do RS. Num dos artigos, que infelizmente a minha memória conseguiu sepultar da mente o título, talvez por um mecanismo de defesa do ego, havia uma análise das lutas camponesas no Brasil e também das “guerras” nativistas . O autor, no final, apresentava uma espécie de questionário para ser respondido e , então, mencionava uma série de livros, que ajudariam a responder as interrogações. Nessa bibliografia estavam dois livros de um autor que me chamou logo a atenção: 1- A Terra e o Homem no Nordeste e 2- A Guerra dos Cabanos. O autor era Manuel Correia . de Andrade...

Preparem-se! A frase do meu velho professor voltou-me naqueles anos de chumbo. Novamente M.C. de Andrade despontava nas páginas dos livros, ajudando-me a desvendar a essência das coisas nas manifestações externas dos fenômenos sociais... Um novo mundo eu começava a descobrir com aquelas leituras... na solidão do meu quarto.

E veio um período de escuridão e de silêncio e de medo; um tempo para acumular excessos de vontade e reprimir sonhos juvenis.

Em 1972, querendo conhecer ainda mais o mundo, fiz o vestibular para a UFPE e passei a cursar Geografia. No primeiro dia de aula, tive vontade de conhecer M.C. de Andrade. Caminhei por um comprido corredor, onde estavam gabinetes de professores notáveis, de um lado e de outro, com umas placas simples afixadas nas portas: Prof. Gilberto Osório, Prof. Jerônimo Lemos de Freitas, Prof. Romildo Carvalho, Prof. Hilton Sette... Não havia a sala do Prof. M.C. de Andrade que, depois fiquei sabendo, se transferira para o Departamento de Economia da referida universidade. Fui ser aluno de Hilton Sette, um homem culto e de voz estridente. Um excelente professor universitário, mas com lamentável e impeditivo problema de visão.

Creio que em 1975, caminhando por esse corredor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE, vinha em minha direção um homem forte, alto, de passos calmos...Ao passar, cumprimentou-me e a um colega que comigo estava...

Perguntei a esse aluno de minha turma:
-quem é esse professor?
- Não o conhece? E´ Manuel Correia de Andrade!
- Não o conhecia pessoalmente! É o M.C. de Andrade?
- Quem?- indagou-me surpreso o colega . M.C. de Andrade???

Sei que fiquei emocionado. M.C. de Andrade, ali junto de mim, cumprimentando-me educadamente. M.C de Andrade, aquele da capa do livro Geografia Geral, que adquiri na livraria de dona Pautília. Tive vontade de chamá-lo para dizer: o senhor me mostrou um mundo que eu não conhecia...! Inibi-me, contudo.

Dois anos depois, fui ser aluno do Curso de Mestrado em Geografia da UFPE, que havia sido recentemente criado. Ao inscrever-me nas disciplinas, notei que havia uma, com um pomposo título: “História e Rumos do Pensamento Geográfico”- prof. responsável: Manuel Correia de Andrade. Matriculei-me, de imediato. A expectativa era a mesma daquela por mim vivenciada no já distante ano de 1963.

O contato com Manuel Correia foi sendo cada vez mais constante. De início, uma relação aluno-professor, que desembocou numa amizade e concluída na honrosa situação de ser co-autor de trabalhos acadêmicos dele. Agora não era mais M.C. de Andrade. Ele não assinava mais assim os seus trabalhos de pesquisa nem suas dezenas de livros de Geografia e História. Mas para mim ele continuava M.C. de Andrade.

Em 1976, quando coordenou o Mestrado em Geografia , o Brasil estava ainda sob um regime de exceção. A análise dialético-marxista dos fenômenos sociais e econômicos era absolutamente proibida. A barreira era imensa. Como transpor os obstáculos à livre manifestação do pensamento? Eis a questão central naqueles anos.
Manuel Correia, ao estruturar o curso, convidou para ministrar aulas alguns dos mais renomados professores de Geografia do Nordeste brasileiro, mas tidos como “conservadores”: Gilberto Osório de Andrade, Rachel Caldas Lins, Mário Lacerda de Melo, Romildo Ferreira de Carvalho. Porém, de forma ousada, incluiu no quadro docente do curso, jovens professores de esquerda (naquela época havia Esquerda e Direita...), quase todos de orientação marxista. E o curso passa a funcionar com as duas vertentes ideológicas convivendo harmoniosamente e impedindo que medidas repressivas fossem tomadas contra aquele curso meio “herético” e “híbrido”.

O Curso de Mestrado em Geografia começou a assumir um papel polarizador. De repente, espalhou-se que, em Pernambuco, havia um Mestrado em Geografia com orientação marxista. E aí surgem alunos do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Acre, Rio Grande do Norte... As aulas de Manuel Correia, que nunca se assumiu como marxista, eram concorridas e tinham uma grande carga de leitura, sempre atualizada. Vez por outra, o prof. Manuel contava umas histórias engraçadas, que causavam um riso generalizado, descontraindo a todos.

Convivi com Manuel Correia durante 30 anos. Ele considerava-me um “homem conservador”, politicamente falando, mas nunca vetou-me em nada! Gostava de conversar sobre política com ele, que sempre se auto-referia como “um homem de esquerda”, disciplinado e fiel aos princípios que carregava desde os anos da Ditadura Vargas. Impressionava-me essa fidelidade ideológica.

No ano de 2006, estava com Manuel Correia, numa reunião de discussão sobre um livro de Geografia de Pernambuco, por ele coordenado. Antes de começar a reunião, “puxei assunto” político. E esse diálogo, que tentarei reproduzir aqui, foi o que mais me impressionou nesses trinta anos de convivência.

- Prof. Manuel, como é que o senhor está vendo essa crise nacional?
- Lucivânio, nunca vi algo assim! Nunca pensei que iriam fazer algo assim no Brasil. Tenho vergonha!
- Prof. Manuel, o senhor tem uma coluna semanal num importante jornal daqui, por que não escreve sobre isso? Por que não denuncia isso?

Ele calou-se e ficou com os olhos vermelhos, quase chorando.
Um artigo de Manuel Correia, denunciando a corrupção estruturadíssima, as traições de princípios por alguns políticos de esquerda e outras coisas mais do mesmo gênero, que criaram a maior crise ética da História da República, teria um efeito devastador, sobretudo nos meios intelectuais. Quem poderia rotulá-lo de conservador? Quem ousaria acusá-lo de defensor das “elites” por criticar o óbvio? Preferiu não escrevê-lo para publicá-lo, no espaço dominical do Jornal do Commércio que lhe era reservado, em nome de seus princípios político-ideológicos.

Tive o privilégio, em certo sentido, de ter lido esse artigo, nunca escrito por ele, todas as frases, todos os parágrafos e sinais gráficos naqueles olhos vermelhos, lacrimejando... e no silêncio que se fez na sala da Cátedra Gilberto Freyre, onde estávamos. Olhos tristes da decepção!

A vida segue inexorável, porém a obra acadêmica de M.C de Andrade e o seu exemplo de homem estudioso ficarão para sempre sedimentados na História das Ciências Sociais e da Terra no Brasil.

* Professor Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco

2 comentários:

parabens caro ricardo por essa materia
sou fã desses dois mestres.johnny

Parabens pela maravilhosa materia . conheci o prof M.C. de Andrade no CEP em 1958, antigo Ginasio Pernambucano e que depois voltou a ser denimonado de Ginasio Pernambucano. Fui aluna do Prof Hilton Sette no antigo terceiro ano ginasial,hoje setima serie.Aulas maravilhosas do prof que nao se separava do guarda chuva.Wilsonita

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