domingo, 17 de fevereiro de 2013

O Princípio Esperança


 
 
O desejo de ser as coisas melhorarem não adormece. Nunca nos livramos do desejo, ou então nos livramos apenas ilusoriamente. Seria mais cômodo esquecer esse anseio do que realizá-lo, mas para onde isso levaria hoje? Os desejos ainda assim não cessariam, ou se travestiriam em novos, ou até nós, os sem-desejo, seríamos os cadáveres que os maus pisariam no caminho para a sua vitória. Não é hoje de desistir dos desejos.

Os que sofrem privação sequer pensam nisso: eles sonham que seus desejos um dia serão realizados. Sonham com isso, como diz a expressão coloquial, dia e noite, portanto não só aa noite. Isso também seria muito estranho, já que o dia é o momento em que a privação e o desejar mais se fazem presentes. Há sonhos diurnos em número suficiente, só não foram satisfatoriamente observados.

Mesmo de olhos abertos, no seu íntimo a pessoa pode ver tudo colorido ou em forma de sonho. Se a propensão para melhorar aquilo que nos tornamos não adormece nem durante o sono, como o poderia durante a vigília? Poucos são os desejos que não estão carregados de sonho, justamente quando eles tomam consciência de si. Mas, então, quem sonha durante o dia é visivelmente diferente de quem sonha durante a noite. Muitas vezes, quem devaneia segue um fogo-fátuo, desvia-se do caminho. Mas ele não dorme e não submerge na névoa.

Por quanto tempo o nosso interior impulsiona só para a frente? O desejar quer alguma coisa, não ocorre de um modo qualquer, raramente aflige sem razão. Porém, se ele se apressa em aterrissar, o impulso que nele opera consegue atingir seu alvo? Por algum tempo, num primeiro momento, talvez o impulso e qualquer apetite possam ser surpreendentemente saciados.

Não há nada que deixe o saciado mais indiferente que um pedaço de pão e para o curioso não há nada mais ultrapassado que o jornal que acabou de ler. Contudo, nos bastidores, tudo se levanta outra vez. Começando com a fome, não há desejo arrefecido. E também as imagens pintadas diante dos olhos por um desejo que está se saciando aas vezes param no ar como se não pudessem baixar até o chão.

O desejo e a vontade voltados para eles continuam vivos, eles mesmos continuam vivos. Também os sonhos realizáveis, quando aterrissam em solo plano, nem sempre chegam inteiros: frequentemente, um resquício fica pra trás. Ele é diáfano como o ar, como o vento. Todavia, é perceptível, é mais forte que a carne. Um homem espera pela moça, o quarto está cheio de inquietação carinhosa, a última luz do anoitecer está nele, aumentando a expectativa.

Contudo, quando a esperada ultrapassa o limiar e tudo fica bem, tudo está aí, o próprio esperar não está mais presente, desapareceu. Ele nada mais tem a dizer e, ainda assim, levou algo consigo, algo que não repercute na alegria existente. A satisfação completa é rara, provavelmente nunca ocorreu. No sonho de algo, antes de regozijar-se o coração, tudo era melhor ou parecia ser.

Imaginar-se rumando para o melhor sucede, num primeiro momento, apenas interiormente. É um indicativo de quanta juventude reside no ser humano, quanta coisa há nele a esperar. Esse esperar não quer adormecer, por mais que tenha sido enterrado: nem mesmo no caso do desesperado ele tem os olhos totalmente fixados no nada.

Até o suicida se refugia na negação como se fosse um colo: ele espera o sossego. Inclusive a esperança frustrada vagueia por aí atormentando, qual fantasma que não encontra o caminho de volta para o cemitério, e anda atrás de imagens refutadas. Ela não desaparece por si mesma, mas somente dando-se uma nova forma. O que caracteriza o amplo espaço da vida ainda abera e ainda incerta do ser humano é a possibilidade de assim velejar em sonhos, que são possíveis sonhos diurnos, muitas vezes do tipo totalmente sem base na realidade.

O ser humano fabula desejos: é capaz disso e em si mesmo encontra material suficiente, mesmo que nem sempre seja o melhor, o mais durável. Esse fermentar e efervescer acima da consciência constituída é o primeiro correlato da fantasia, que principalmente é apenas interior, situado no interior de si mesma.

 Mesmo os sonhos mais idiotas existem ao menos em forma de bolhas de espuma e os sonhos diurnos até contém uma espuma da qual aas vezes já surgiu uma Vênus. Em parte alguma o animal conhece isso: somente o ser humano, que, embora muito mais desperto, entra em efervescência utópica.

 É como se sua existência fosse menos impermeável, apenas de, comparada com a da planta e a do animal, ser muito mais intensa. Não obstante, a existência humana possui um ser mais em fermentação, mais alvorescente na sua borda e orla superior. É como se aqui algo tivesse ficado oco, um novo espaço vazio teria acabado de surgir. É nele que se movem os sonhos, e no seu interior circula o possível que talvez nunca poderá se tornar exterior.

 
BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança vol 1. Ed. UERJ, pp. 79-177-194

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